Uma Pequena História dos Quadrinhos Autobiográficos
Escrevi este artigo originalmente para um projeto de revista que não se concretizou, mais tarde ele foi publicado aqui mesmo na web. Foi escrito quase um ano atrás, encontra-se um pouco desatualizado, mas acredito que ainda é relevante para os leitores do Caixa de Gibis e pesquisadores do assunto, hoje, exatamente um ano após a morte de Harvey Pekar.
Quando uma criança rabisca seus primeiros desenhos ela tenta representar o mundo ao redor, os pais, os irmãos, a casa, o cachorro, os colegas de escola, enfim, o universo que a cerca e que ela pode alcançar com as mãos, mas que ainda não compreende. Os desenhos infantis sempre tentam contar histórias da vida da criança, são uma tentativa sincera de comunicação primitiva. Nos primórdios da História das Artes temos as pinturas feitas nas cavernas, onde os primeiros humanos que habitaram o planeta fizeram um esforço sincero para representar o seu cotidiano de caçadas e rituais mágicos, a relação com a natureza e os Deuses. Estes relatos, muitas vezes em imagens claramente sequenciais, podem nos levar a compreender mais acerca do nosso passado.
As Histórias em Quadrinhos, na forma em que se encontram hoje, são a manifestação mais primitiva de uma arte sofisticada, a expressão mais simples e pueril dos grandes sentimentos poéticos antes atingidos pela literatura, a pintura e a poesia em suas formas clássicas. A confirmação desse status, não por acaso, veio dos relatos de histórias reais do cotidiano feitos em forma de quadrinhos, as chamadas HQs Autobiográficas, que hoje fazem grande sucesso e que nos últimos anos se firmaram como um novo gênero da literatura em imagens, também conhecida como Graphic Novel, ou Romance Gráfico.
Podemos rastrear o surgimento da Graphic Novel Autobiográfica até o final dos anos 1960, quando o artista italiano Hugo Pratt narrava as aventuras de Corto Maltese. Suas histórias traduziam para as HQs experiências de viagens pelo mundo realizadas na vida real pelo autor, no entanto, fantasiando-as na saga de um pirata que teria vivido no início do século XX. Pela primeira vez uma História em Quadrinho trazia as experiências do autor como tema, mesmo que ainda não de forma confessional. Além disso, na obra de Pratt também se encontra o germe do que hoje chamamos Graphic Novel. Qualquer um que vier a ler A Balada do Mar Salgado, de 1967, vai reconhecer todos os componentes da moderna História em Quadrinho adulta, ainda impregnada de elementos de folhetim aventuresco comuns nas tiras e séries, porém já plena de dramas, profundidade e sofisticação narrativa que hoje caracteriza o gênero. Pratt cunhou o termo “literatura desenhada” para defini-la.
Foi nos Estados Unidos, exatamente na mesma época, que o primeiro artista de quadrinhos colocou a si próprio como personagem de uma narrativa, e este pioneiro foi Robert Crumb. A idéia surgiu de um defeito pessoal do artista: a sua timidez e incapacidade de lidar com outras pessoas, principalmente o sexo oposto. Antes de se tornar famoso, Crumb era rejeitado pelas mulheres e não conseguia se entrosar com os amigos. Para poder ficar imerso em seu mundo pessoal sem se preocupar com o que os outros diziam, desenvolveu o hábito de desenhar em cadernos, daí surgiu a maioria de suas histórias, observando e desenhando tudo ao redor. Seu espírito satírico e provocador concebeu o que chamamos de Confissões de Robert Crumb, nada mais do que diários desenhados onde o artista, representado por si mesmo de forma pouco lisonjeira, realizava suas taras mais perversas, tirava sarro e ridicularizava os personagens estereotipados e esquisitos dos anos 60: os hippies, as feministas, os místicos e toda aquela fauna de gente doida com quem ele convivia. Mais tarde ele se voltou para sua história pessoal, suas experiências com drogas e a sua infância conturbada, sempre com desenhos selvagens, primitivos e agressivos. O que Crumb fazia não era sério nem tinha a sofisticação da busca por uma “literatura desenhada”, mas o estrago já estava feito, ele se tornou um sucesso e nunca mais as Histórias em Quadrinhos seriam as mesmas.
Os artistas do chamado movimento underground americano seguiram o exemplo de Crumb, usavam temas escatológicos e provocativos, abusavam de nonsense e crítica ao sistema, construindo um misto explosivo de Dadaísmo com os gibis da antiga EC Comics. Eles fizeram uso de narrativas biográficas, não buscavam fazer histórias em quadrinhos para a indústria mainstream, mas também não almejavam um novo tipo de literatura, para eles os quadrinhos não poderiam ser uma forma oficial de arte, mas uma antiarte sem compromissos e muitas vezes panfletária, mesmo que seus gibis tivessem sucesso.
A experiência do underground sessentista com os quadrinhos autobiográficos poderia ter morrido na década seguinte, pois não eram mais novidade e não se afirmaram como um gênero literário, tendo se destacado apenas como realizações isoladas ou idiossincrasias artísticas. Isso se não fosse pela entrada em cena de um amigo anônimo de Crumb que decidiu contar suas aventuras pessoais. Ele era um arquivista de hospital por profissão, crítico de jazz antigo por vocação e decidiu se tornar quadrinhista por teimosia.
Harvey Pekar foi quem realmente transformou os gibis autobiográficos em um gênero. Suas histórias não eram sátiras ácidas e críticas ao sistema ao estilo dos artistas underground, mas sim confissões puras e secas de um cotidiano vivido por uma pessoa comum, sem referência nenhuma a estilos anteriores de fazer quadrinho. Ele foi o primeiro a criar um link entre os quadrinhos e a moderna literatura americana. Com suas crônicas do cotidiano, Pekar conseguiu levar as HQs a condição primitiva que ela necessitava para ser realmente autobiográfica, ele quebrou os limites que os outros não ousaram.
Seus primeiros roteiros foram para o amigo Crumb, que só topou desenhá-los depois de uma certa insistência. O fanzine American Splendor, publicado a partir de 1976, foi o estopim de um novo tipo de quadrinho. Com enredos sem aventura no sentido real do termo, parece tudo muito vazio e entediante, é um universo onde as pessoas e as coisas não oferecem grandes possibilidades nem trazem grandes poderes. Seus personagens não são super heróis pouco humanos nem humanos com superpoderes, são simplesmente pessoas comuns envolvidas com as banalidades do cotidiano. Apesar disso, estas pequenas crônicas miseráveis nos oferecem certo humor e exalam o espírito pessimista que é a característica mais forte da grade prosa moderna de autores como John Fante, Charles Bukowski e Jack Kerouac. Ele fala sobre suas tentativas de vender discos velhos para os colegas de trabalho ou sobre a impaciência nas filas de supermercado, problemas conjugais e rotina, rotina pura e massacrante. De fato, Harvey Pekar, falecido recentemente, pode ser considerado o anti-Stan Lee dos quadrinhos.
Nos anos que se seguiram, outro artista americano, um veterano egresso das tiras de jornais chamado Will Eisner, criador do herói Spirit, buscou inspiração nas realizações dos quadrinhistas do underground, mas sem a agressividade e subversão característica deles. Eisner tinha grande visão comercial e simplesmente juntou a idéia de Crumb de um quadrinho que desprezava os esquemas mainstream de super-heróis e temas prontos voltados para o público infantil, com a sofisticação narrativa dos europeus, então desconhecidos na América, “criando” o que já existia há alguns anos na Europa: a “literatura desenhada”, uma História em Quadrinhos voltada para o público consumidor adulto, que ele, mais esperto do que os demais, chamou simplesmente de Graphic Novel. Eisner seguiu pelos anos oitenta com uma série dessas Graphic Novels, a maior parte delas contando experiências de sua vida real, mas sem se colocar como personagem, ou seja, romanceando os fatos. Até fazer sua biografia propriamente dita - No Coração da Tempestade - em 1991, uma obra pungente e apropriada a sua história de vida. Porém, Eisner nunca ultrapassou certos limites comuns aos quadrinhos mainstream.
Aparentemente sem relação alguma com Eisner, Pekar, Crumb e os artistas ocidentais, um mangaká de nome Keiji Nakazawa apresentou no Japão, a partir de 1972, a obra Gen - Pés Descalços, publicada originalmente em capítulos na revista Shonen Jump. Este mangá conta suas experiências como sobrevivente do extermínio atômico de Hiroshima, em um relato longo, detalhado, dramático e visceral que hoje é considerado um clássico em todo o mundo. Este é um exemplo de que, apesar de ter manifestação mais documentada nas obras do ocidente, os quadrinhos autobiográficos tem seu início acontecendo paralelamente em todo mundo, inclusive no Oriente.
Este espírito contagiou novo artistas que admiravam os velhos quadrinhos hippie underground, mas que ao mesmo tempo já sabiam que aquele clima de sátira e combate não diz mais nada aos novos leitores e que também não queriam se dedicar a “renovação dos super-heróis” ocorrida na década de 1980. Foi ao redor de Art Spiegelman, e de sua revista RAW, que uma nova cena underground se formou, agora chamada de “alternativa”. Estes artistas encontrariam sua expressão máxima em quadrinhos que exploravam o cotidiano puro, sem mediações e sem a pretensão de criar aventuras fantásticas. Nesse meio a biografia ou autobiografia se tornou um tema constante. O próprio Spiegelman abriu caminho com a Graphic Novel MAUS, um gibi sombrio e perturbador que narra a história de seu pai, um sobrevivente dos campos de concentração nazistas. Com este trabalho ele atingiu uma marca nunca antes conquistada por uma História em Quadrinhos: recebeu um prêmio Pulitzer. No entanto, a abordagem de Spiegelman é considerada erroneamente como jornalística, o que não se pode confirmar pelo fato de ele narrar a biografia do pai sem ter sequer fatos objetivos, mas sim uma história subjetiva, ouvida fora do tempo e espaço dos próprios fatos.
Os anos 1980 e 1990 trazem um rompimento radical desses artistas alternativos com o modo oficial de fazer quadrinhos, inclusive com o velho underground. Nessa época em que cada vez mais a juventude passou a ver o mundo por trás de uma trincheira de individualismo niilista, com o fim dos velhos ideais de preocupação com o social e a completa derrocada da simples crença no efeito político do trabalho artístico, os quadrinhistas passam a se ocupar com suas fantasias pessoais, suas vivências íntimas e conflitos afetivos e familiares. Nós temos os irmãos Hernandez contando as histórias de um povo simples do interior nas Crônicas de Palomar, e misturando ficção científica com romance barato em Love and Rockets. Temos as histórias sobre adolescentes conflituosos de Charles Burns e Adrian Tomine e os arroubos de cinismo e desilusão de Daniel Clowes.
Na obra de todos esses novos artistas o desenho é o que menos se destaca, parece que o texto finalmente começa a ter uma importância maior nas Histórias em Quadrinhos, o humor como gênero não tem mais preponderância, é apenas um elemento ocasional, não há tanta preocupação com aspectos formais e seus gibis passam a ser lançados como livros por editoras novas dedicadas inteiramente a este ramo, como a Fantagraphics e a Drawn and Quarterly. É nessa época que as Graphic Novels chegam às livrarias, puxadas pelo selo Vertigo e os gibis de super heróis voltados para o público adulto.
Há quem relacione este zeitgeist individualista e alienado ao extremo com o rock pós-punk. Este estilo musical típico dos anos 1980 trouxe acima de tudo um desprendimento do que eu chamo de “obrigação de divertir” da cultura pop, e ao mesmo tempo rompeu com a militância idealista dos seus antecessores punks e o formalismo dos velhos dinossauros do rock clássico. Em letras de bandas como Joy Division o que se vê são frases soltas de angústia e desespero, quem os ouvia estava pouco preocupado com o “sistema” e nem sequer estava se divertindo ou interessado na performance musical, mas celebrando seu mundo subjetivo. O novo quadrinho alternativo dos anos 80 e 90, essencialmente autobiográfico, destruiu certos formalismos e a obrigação de saber desenhar bem, assim como no pós-punk ninguém sabia tocar guitarra nem escrever poesia, mas vivia inteiramente imerso em uma espécie de catarse subjetiva, e fazia isso com uma beleza arrebatadora. Então, a partir de agora, se você faz um gibi, além de não se sujeitar à velha linha de montagem que é a indústria dos super-heróis e de não precisar mais dizer o que pensa do sistema em sátiras ácidas, muitas vezes pueris, você também não precisa mais de um desenho impactante e virtuoso, mas de uma forma intuitiva e intimista você vai desvelando ao mundo o seu universo pessoal, e isso como um homem das cavernas rabiscando na parede, sozinho e sem nenhum consolo.
Os anos 1990 e a década que chega ao fim confirmaram essa tendência universal. Algumas obras recuperaram certo formalismo em graus variados, mas sempre privilegiando uma certa espontaneidade. No trabalho do brasileiro Lourenço Mutarelli, por exemplo, o mundo se deformou em angústia e desespero, até os antidepressivos viraram poesia, contradizendo a máxima de que o povo do nosso país é extrovertido e alegre, Lourenço registrou uma visão de mundo torturante, parodiando os velhos expressionistas. O japonês Kazuichi Hanawa detalhou de forma repetitiva seu encarceramento por um crime banal em A Prisão. Frédéric Boilet contou suas aventuras eróticas com meninas japonesas em O Espinafre de Yukiko e Garotas de Tóquio. O espanhol Jaime Martin narrou sua juventude perdida sem romantismos em Vida Louca. A americana Debbie Drechsler declarou ter sido estuprada pelo pai. Em Persépolis, a iraniana Marjani Satrapi mostra como era uma garotinha rica e americanizada que sofreu muito com a ascensão do regime dos Aiatolás. O canadense Guy Delisle viajou a Coréia do Norte e trouxe a prova de que o comunismo é o mal eterno.
Ao mesmo tempo, vemos o ítalo-americano Joe Sacco, um jovem discípulo dos velhos autores underground que começou contando histórias autobiográficas de sua vida de estudante, mas que após formar-se jornalista e por gostar de pesquisar os fatos in loco, investiu em narrativas de experiências em zonas de guerra, criando Gorazde e Palestina. Os críticos prontamente chamaram sua obra de jornalismo em quadrinhos, porém elas não passam na verdade de Quadrinhos Autobiográficos contextualizados por fatos verificáveis, às vezes documentados, mas apresentados sob um ponto de vista subjetivo, um tipo de jornalismo visceral e primitivo. O maior exemplo disso talvez seja O Fotógrafo, dos franceses Lefèvre, Guibert e Lemercier, onde um trabalho coletivo esplêndido, mesclando fotografias e desenhos, serve unicamente de escape para uma visão intimista sobre o oprimido povo do Afeganistão.
E hoje temos as maiores premiações dos quadrinhos sendo conferidas à obras de cunho autobiográfico ou biografias romanceadas. Retalhos, de Craig Thompson, é a narrativa juvenil exagerada de uma vivência de amor adolescente, sem atingir grandes alturas poéticas, mas tendo força na sua constrangedora sinceridade - o autor gasta 600 páginas contando sua adolescência nos míseros detalhes - para ganhar inúmeros prêmios. Porém nesse gênero também surgem obras primas, não apenas obras premiadas, o maior exemplo talvez seja Fun Home, de Alison Bechdel, em que a autora narra a descoberta da sua homossexualidade, fazendo um paralelo com a possível homossexualidade de seu pai, tendo como referência grandes obras da literatura. Epiléptico, do francês David B., relata a crise gerada em sua família pela doença do irmão, em um trabalho gráfico magnífico. Umbigo Sem Fundo é uma HQ tosca e desajeitada, com um péssimo desenho, mas com falas e personagens muito bem construídos, contando uma experiência de separação familiar.
E por fim temos obras que não são propriamente biografias, são ficções que trazem elementos da vida comum, sem nada de fantástico em sua composição, ou com apenas algumas referências a vida do autor. Jimmy Corrigan - O menino mais esperto do mundo é uma obra formal, difícil de se ler e que traz uma densa e complexa reflexão sobre relações entre pai e filho. O autor, Chris Ware, sacrificou todo o prazer que pode advir da leitura de uma HQ para criar uma obra única, desagradável e feia, mas poderosa e comovente. Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, vencedora do prêmio Eisner deste ano e com certeza uma das maiores HQs já realizadas, conta a vida de um velho arquiteto reaprendendo a conviver com as pessoas, entre considerações filosóficas profundas e uma trama repleta de significados ocultos. Não é uma autobiografia, mas sem dúvida tem elementos da vida do autor.
Os limites foram quebrados, muita coisa boa já foi feita e ainda vai ser feita, e mesmo que eu seja uma pessoa que odeia o cotidiano e que urge por se voltar aos universos da fantasia pura, eu aprecio enormemente os Quadrinhos Autobiográficos. Isto por que, quando reconheço que não há fantasia que nos console sobre todo este absurdo da existência e o aluguel está vencendo e tudo em que eu penso é em arrumar uma companhia, ter um novo emprego, beber um pouco mais e compreender as pessoas que me cercam; quando a busca por ideais distantes parece ser a última opção para dar uma continuidade sã a minha vida, o fato de poder saber que outras pessoas, muitas vezes completamente diferentes de mim, que vivem ou viveram em lugares ou épocas distantes, em culturas diversas, têm os mesmos e banais pensamentos e preocupações... eu me sinto menos sozinho, um pouco mais humano e mais integrado.
Na experiência dessas pessoas eu posso buscar uma resposta, ou não, posso achar uma confirmação do meu desespero. E com certeza posso saber que eu não sou o único que está perdido nisso tudo, e a partir dai ter um pouco mais de calma, e um pouco daquela paz que só a arte, esculpindo humanas mágoas, pode nos proporcionar.
Artigo publicado originalmente no blog NSN
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