Black Hole, de Charles Burns
Publiquei esta resenha a algum tempo em outro blog, mas achei interessante que ela estivesse por aqui. Black Hole é uma das minhas HQs preferidas e apesar das falhas, ainda gosto desse texto. Serve pelo menos pra tapar o buraco das atualizações neste momento em que estou sem tempo hábil pra trabalhar no blog.
Eu tinha um amigo chamado N. Éramos crianças, morávamos na mesma rua e estudávamos no mesmo colégio, nossas mães eram amigas e freqüentávamos a mesma igreja. Como toda a turma da nossa rua, passávamos muito tempo jogando bola, correndo pelo parque e fazendo todas as traquinagens que as crianças fazem. Um dia N. tentou recuperar uma pipa que tinha se prendido em uma árvore, mas acabou mexendo em um ninho de vespas e foi atacado. Ele saiu correndo e atravessou a rua sem olhar, foi atropelado por um ônibus. Ele sobreviveu, mas ficou com sequelas; uma deficiência nas pernas, elas entortaram e ele não pôde mais andar. Um dia eu e alguns moleques do bairro fomos visitar N. em sua casa, ele estava deitado no sofá assistindo desenhos. Foi constrangedor - na medida em que uma criança pode se constranger - ver N. imobilizado enquanto nós estávamos todos sujos da areia do parque. Isso só nos fez querer cair fora da li e nunca mais vê-lo. Nenhum de nós sabia o que dizer, nem desejou que ele melhorasse, ou consolou a pobre mãe, apenas queríamos sair dali e ficar bem longe de N. Nunca mais fomos visita-lo, por mais que nossas mães pedissem. Ele voltou a andar em dois anos e quando passava na rua, sempre com a mãe, às vezes nos cumprimentava, e nós respondíamos muito envergonhados. Não sei o que aconteceu com N. ao longo dos anos.
Na adolescência eu tinha uma amiga chamada D. Ela era uma das garotas mais populares da nossa turma. Nós tínhamos um grupo de RPG. D. era uma das mais queridas ali, ela era alegre, inteligente, bonita, amiga de todos, até dos tipos estranhos como eu. Ela era também uma das mais promíscuas, ficava com muitos caras e teve um filho cedo, um lindo garoto chamado A. O RPG acabou, mas nós continuamos amigos, ela foi trabalhar e criar seu filho, eu também segui minha vida. Um dia ela chegou ao meu trabalho desolada, com um papel na mão, havia contraído AIDS, isso aconteceu quando D. tinha 21 anos. À partir dai a vida dela se tornou um inferno, sua mãe e o padrasto a proibiram de tocar no filho, a obrigaram a usar talheres e objetos pessoais separados, lavar o banheiro sempre que usasse e separar suas roupas para não misturar com as roupas das outras pessoas da casa na máquina de lavar. Ela jogava RPG com um outro grupo e escondeu deles que tinha AIDS. Mas um dia eles descobriram, e quando ela apareceu em uma tarde de sábado pra jogar, eles se recusaram a falar com ela, a humilharam chamando-a de "aidética" e quando ela se revoltou, lhe atiraram pedras. D. ainda continuou minha amiga por um período, mas com o tempo não consegui mais me relacionar com ela, foi se tornando mais e mais constrangedor para nós dois, ela não parecia mais ser a mesma pessoa, e por fim, perdi o contato. Mais tarde soube que ela andava deprimida e bebia muito, apesar de estar doente. Já se vão seis anos e não sei o que aconteceu com D., nem se ela ainda vive.
Um buraco negro se abre para o adolescente Keith Pearson quando ele observa as entranhas de uma rã dissecada na aula de biologia; como se visse o futuro, e a visão fosse terrível, ele desmaia obsedado pelo horror. Todos os colegas ficam espantados e riem para não pensar naquilo, exceto Chris Rhodes, a garota que ele gosta, como se ela também tivesse visto alguma coisa. É assim que começa uma das histórias em quadrinhos mais aclamadas dos últimos anos, Black Hole, vencedora do Prêmio Eisner de Melhor Graphic Novel em 2006, além de nove Prêmios Harvey. A autoria é do artista americano Charles Burns e foi publicada no Brasil em dois volumes pela editora Conrad, em 2008. Iremos acompanhar a história dos adolescentes Keith, Chris e seus amigos em uma experiência de horror que certamente irá mudar sua forma de ler histórias em quadrinhos e, talvez, sua própria percepção da realidade.
Na adolescência eu tinha uma amiga chamada D. Ela era uma das garotas mais populares da nossa turma. Nós tínhamos um grupo de RPG. D. era uma das mais queridas ali, ela era alegre, inteligente, bonita, amiga de todos, até dos tipos estranhos como eu. Ela era também uma das mais promíscuas, ficava com muitos caras e teve um filho cedo, um lindo garoto chamado A. O RPG acabou, mas nós continuamos amigos, ela foi trabalhar e criar seu filho, eu também segui minha vida. Um dia ela chegou ao meu trabalho desolada, com um papel na mão, havia contraído AIDS, isso aconteceu quando D. tinha 21 anos. À partir dai a vida dela se tornou um inferno, sua mãe e o padrasto a proibiram de tocar no filho, a obrigaram a usar talheres e objetos pessoais separados, lavar o banheiro sempre que usasse e separar suas roupas para não misturar com as roupas das outras pessoas da casa na máquina de lavar. Ela jogava RPG com um outro grupo e escondeu deles que tinha AIDS. Mas um dia eles descobriram, e quando ela apareceu em uma tarde de sábado pra jogar, eles se recusaram a falar com ela, a humilharam chamando-a de "aidética" e quando ela se revoltou, lhe atiraram pedras. D. ainda continuou minha amiga por um período, mas com o tempo não consegui mais me relacionar com ela, foi se tornando mais e mais constrangedor para nós dois, ela não parecia mais ser a mesma pessoa, e por fim, perdi o contato. Mais tarde soube que ela andava deprimida e bebia muito, apesar de estar doente. Já se vão seis anos e não sei o que aconteceu com D., nem se ela ainda vive.
Um buraco negro se abre para o adolescente Keith Pearson quando ele observa as entranhas de uma rã dissecada na aula de biologia; como se visse o futuro, e a visão fosse terrível, ele desmaia obsedado pelo horror. Todos os colegas ficam espantados e riem para não pensar naquilo, exceto Chris Rhodes, a garota que ele gosta, como se ela também tivesse visto alguma coisa. É assim que começa uma das histórias em quadrinhos mais aclamadas dos últimos anos, Black Hole, vencedora do Prêmio Eisner de Melhor Graphic Novel em 2006, além de nove Prêmios Harvey. A autoria é do artista americano Charles Burns e foi publicada no Brasil em dois volumes pela editora Conrad, em 2008. Iremos acompanhar a história dos adolescentes Keith, Chris e seus amigos em uma experiência de horror que certamente irá mudar sua forma de ler histórias em quadrinhos e, talvez, sua própria percepção da realidade.
A história se passa na cidade de Seattle nos anos 70, onde um típico grupo de adolescentes americanos de classe média vive o esplendor da liberação do sexo e das drogas, herança do movimento hippie. O cotidiano deles vai da escola para as festinhas, paqueras e transas, passando por sessões de chapação ao ar livre, escondidos no meio do mato em um lugar que chamam de "planeta xeno". Tudo poderia ser um pedaço da Era de Aquário na terra, se esta não fosse uma história de horror. Como criaturas alienígenas inomináveis de revista pulp, uma misteriosa doença surge entre eles e invade o feliz "planeta xeno", causando desgraças e loucura.
Ela surge sem explicação ou aviso, estragando o mundo de prazeres irresponsáveis construídos pelos adolescentes. A praga é transmitida através do ato sexual e os infectados desenvolvem como sintoma as mais horríveis deformações. Podem ser membranas entre os dedos, ou trocar toda sua pele com frequência, desenvolver chifres enormes na forma de garras ou tumores nojentos por todo o corpo, cada um tem um sintoma diferente. Alguns conseguem esconder a doença se a sua deformação não for muito aparente, enquanto outros ficam tão desfigurados que passam a ser párias e precisam abandonar a vida social, passando a viver em cabanas escondidas no meio da floresta.
Keith e seus amigos costumam se esconder nas redondezas para fumar maconha e um dia eles se deparam com bizarras esculturas presas nas árvores por todo mato, eles são burros e curiosos, além disso estão chapados, então decidem investigar. Tentando descobrir do que se trata, encontram vestígios de um acampamento com as coisas básicas de um adolescente: roupas, gibis, Playboys, etc. Indo mais além, Keith encontra aquilo que parece ser toda a pele de uma garota presa em um galho, uma garota que ele pensava que nunca ia conhecer. Ele fica enojado por estar ali no meio do mato se chapando, com todas aquelas coisas estranhas ao redor, sozinho, mas de repente percebe que não está só, e é tomado de horror quando uma máscara de halloween mal feita se revela uma pessoa deformada com tumores nojentos por todo rosto e cabeça, abrindo uma boca fedorenta e desdentada e pedindo em murmúrios desconexos que ele vá embora!! Ao retornar para seus amigos, descobre que eles também encontraram acampamentos e até um Livro do Ano com o nome de Richard Holstrom, um dos nerds perdedores da escola. Em seguida entramos nos sonhos de Chris, a garota bonita da aula de biologia, mas aqui ela não parece tão atraente. Ela sonha com Keith sem saber o nome dele, e no sonho, ele se transforma em um monstro com corpo de serpente. Há rapazes nus em um lago, um tipo incomum de cigarros e órgãos sexuais que ninguém gostaria de acariciar.
Este é o outro nível de Black Hole: o dos sonhos e dos simbolismos sexuais. Há uma série de referências aos órgãos feminino e masculino ao longo de toda história e elas tem sempre uma ligação com o horror, a deformação e a morte. O sexo parece ser a própria doença, não apenas sua maneira de contágio. Ao acordar, a garota vai nadar seminua em um lago. É quando suas amigas percebem que há algo estranho em suas costas e reagem demonstrando constrangimento, nojo e rejeição. Veremos a pele de Chris se despregar toda de seu corpo e descobriremos que ela a jogou em um galho. O tempo na história não é linear, mas deformado, sua relação com Keith ainda vai se revelar e será visto de quem ela pegou a doença em uma inocente transa no cemitério onde uma boca aparece no mais inusitado lugar.
Ela surge sem explicação ou aviso, estragando o mundo de prazeres irresponsáveis construídos pelos adolescentes. A praga é transmitida através do ato sexual e os infectados desenvolvem como sintoma as mais horríveis deformações. Podem ser membranas entre os dedos, ou trocar toda sua pele com frequência, desenvolver chifres enormes na forma de garras ou tumores nojentos por todo o corpo, cada um tem um sintoma diferente. Alguns conseguem esconder a doença se a sua deformação não for muito aparente, enquanto outros ficam tão desfigurados que passam a ser párias e precisam abandonar a vida social, passando a viver em cabanas escondidas no meio da floresta.
Keith e seus amigos costumam se esconder nas redondezas para fumar maconha e um dia eles se deparam com bizarras esculturas presas nas árvores por todo mato, eles são burros e curiosos, além disso estão chapados, então decidem investigar. Tentando descobrir do que se trata, encontram vestígios de um acampamento com as coisas básicas de um adolescente: roupas, gibis, Playboys, etc. Indo mais além, Keith encontra aquilo que parece ser toda a pele de uma garota presa em um galho, uma garota que ele pensava que nunca ia conhecer. Ele fica enojado por estar ali no meio do mato se chapando, com todas aquelas coisas estranhas ao redor, sozinho, mas de repente percebe que não está só, e é tomado de horror quando uma máscara de halloween mal feita se revela uma pessoa deformada com tumores nojentos por todo rosto e cabeça, abrindo uma boca fedorenta e desdentada e pedindo em murmúrios desconexos que ele vá embora!! Ao retornar para seus amigos, descobre que eles também encontraram acampamentos e até um Livro do Ano com o nome de Richard Holstrom, um dos nerds perdedores da escola. Em seguida entramos nos sonhos de Chris, a garota bonita da aula de biologia, mas aqui ela não parece tão atraente. Ela sonha com Keith sem saber o nome dele, e no sonho, ele se transforma em um monstro com corpo de serpente. Há rapazes nus em um lago, um tipo incomum de cigarros e órgãos sexuais que ninguém gostaria de acariciar.
Este é o outro nível de Black Hole: o dos sonhos e dos simbolismos sexuais. Há uma série de referências aos órgãos feminino e masculino ao longo de toda história e elas tem sempre uma ligação com o horror, a deformação e a morte. O sexo parece ser a própria doença, não apenas sua maneira de contágio. Ao acordar, a garota vai nadar seminua em um lago. É quando suas amigas percebem que há algo estranho em suas costas e reagem demonstrando constrangimento, nojo e rejeição. Veremos a pele de Chris se despregar toda de seu corpo e descobriremos que ela a jogou em um galho. O tempo na história não é linear, mas deformado, sua relação com Keith ainda vai se revelar e será visto de quem ela pegou a doença em uma inocente transa no cemitério onde uma boca aparece no mais inusitado lugar.
Em Black Hole a doença parece atrair suas vítimas, Keith caminha em sua direção, ele é louco por Chris, mas nunca conseguiu ficar com ela, isso o perturba. Ele se tornará um amante da doença. A própria Chris de início parece ter horror de sua condição, mas com o tempo começa a aceitar e se sentir atraída por aquele que a contagiou. Uma das cenas que mais me surpreendeu em tudo que já lí de histórias em quadrinhos, é quando Keith vai até a casa de uns traficantes descolar uns baratos e por acaso conhece uma garota que também tem a doença, ela possui uma deformação que poderia ser a coisa mais dantesca e enojante jamais vista: uma cauda!! Mas para Keith, e para o leitor, ela é uma bela e sedutora garota que oferece gostosos sanduiches de mortadela. Um mostro sensual que não inspira rejeição pela maneira que foi desenhada e por não demonstrar nenhuma preocupação com sua doença, ela age como se fosse uma garota normal, tapa a vagina com a mão, oferece maconha e produz a arte mais terrível e bizarra do mundo. Keith segue em sua obsessão, cada vez mais próximo da praga, é ai que chegamos ao ponto negro do enredo: há pedaços de corpos e as estranhas esculturas são mais do que arte bizarra, nem todos os deformados querem apenas se esconder...
Entre os sonhos e as memórias, a arte sublime de Burns garante uma imersão completa na psicologia dos personagens. Eles são esculpidos nas sombras, e por isso os desenhos de Black Hole fazem lembrar a técnica da xilogravura, onde a base é uma prancha de madeira e a parte gravada representará o branco, ou as partes positivas do desenho. Esta técnica foi muito usada pelo grupo de artistas alemães conhecido como "A Ponte", que foi um dos expoentes do expressionismo no início do século XX.
De fato, a arte de Black Hole lembra os trabalhos de Emil Nolde, Ernst Ludwig Kirchner, Erich Heckel e até do brasileiro Oswaldo Goeldi, um ícone do expressionismo em nosso país. Burns nasceu em 1955 e começou sua carreira de cartunista em 1982 fazendo capas para a revista de vanguarda RAW, dirigida por Art Spiegelman. Essa revista ficou conhecida por ser uma base de novas experiências gráficas e reuniu uma nova geração de cartunistas underground que herdaram o desejo de contestação de Robert Crumb e sua turma. Burns está entre seus principais nomes. A principal contribuição da revista foi reunir e mostrar ao mundo o trabalho de artistas americanos, latino-americanos, europeus e até japoneses então desconhecidos. Uma das maiores influências desses artistas eram as artes gráficas alemãs do início do século XX. Há também um eco dos pioneiros da EC Comics no trabalho de Burns, ele deve muito a Graham Ingels, Harvey Kurtzman e Reed Crandall.
O trabalho com Black Hole lhe tomou mais de dez anos, foi feito com muito cuidado, de 1993 a 2004 e publicado em doze partes de 1995 a 2005, sendo lançado como Graphic Novel pela Fantagraphics em 2006. Existe uma razão para isso, em sua essência Black Hole é uma história de horror no estilo EC Comics, porém há diversos níveis de simbolismo explorados nela. É quando vemos Chris ser rejeitada pelas amigas que percebemos o verdadeiro tema de Black Hole: o medo do que não conhecemos, da monstruosidade, e o choque da entrada para a idade adulta.
Para simbolizar isso, há diversas pistas espalhadas pela história. No início de cada capítulo, por exemplo, aparece um objeto, um tipo de fetiche, e em seguida um personagem da história em uma posição que lembra o objeto, e este terá grande importância no enredo, além de simbolizar a condição psicológica do personagem. Há infinitas alusões aos órgãos sexuais nas formas de serpente, cigarro, ferida, lua, e muitas outras formas. Para muitos, é uma história que poderia ser lida com uma perspectiva psicanalítica. Para mim, os limites estão mais além. Em toda a história da arte, há referências aos órgãos sexuais como forma de simbolizar nossa condição espiritual, desde a pré-história existiam cultos a fertilidade que usavam figuras femininas e representações fálicas. As ciências ocultas, como a Alquimia e a Magia, são plenas de simbolismos eróticos, a integração total do ser humano com seu ser interior é conhecida como o Matrimônio do Céu e da Terra, representado como um ato sexual. Nas catedrais góticas há inúmeros símbolos que representam a vagina, assim como o falo. A pintura medieval também é cheia de referências ao sexo, na obra de Hieronymos Bosch a figura do monstro de forma meio humana e meio animal, sempre erotizado, é uma constante. Como observa Carl Jung, os elementos simbólicos dos sonhos e pesadelos, e também da arte e da mitologia, não são apenas expressões de neuroses e desejos reprimidos, mas sim partes da psiquê que precisam ser integradas e que alertam para uma necessidade de autoconhecimento. O que vemos em Black Hole talvez seja uma das maiores expressões dos quadrinhos como arte já atingida.
De fato, a arte de Black Hole lembra os trabalhos de Emil Nolde, Ernst Ludwig Kirchner, Erich Heckel e até do brasileiro Oswaldo Goeldi, um ícone do expressionismo em nosso país. Burns nasceu em 1955 e começou sua carreira de cartunista em 1982 fazendo capas para a revista de vanguarda RAW, dirigida por Art Spiegelman. Essa revista ficou conhecida por ser uma base de novas experiências gráficas e reuniu uma nova geração de cartunistas underground que herdaram o desejo de contestação de Robert Crumb e sua turma. Burns está entre seus principais nomes. A principal contribuição da revista foi reunir e mostrar ao mundo o trabalho de artistas americanos, latino-americanos, europeus e até japoneses então desconhecidos. Uma das maiores influências desses artistas eram as artes gráficas alemãs do início do século XX. Há também um eco dos pioneiros da EC Comics no trabalho de Burns, ele deve muito a Graham Ingels, Harvey Kurtzman e Reed Crandall.
O trabalho com Black Hole lhe tomou mais de dez anos, foi feito com muito cuidado, de 1993 a 2004 e publicado em doze partes de 1995 a 2005, sendo lançado como Graphic Novel pela Fantagraphics em 2006. Existe uma razão para isso, em sua essência Black Hole é uma história de horror no estilo EC Comics, porém há diversos níveis de simbolismo explorados nela. É quando vemos Chris ser rejeitada pelas amigas que percebemos o verdadeiro tema de Black Hole: o medo do que não conhecemos, da monstruosidade, e o choque da entrada para a idade adulta.
Para simbolizar isso, há diversas pistas espalhadas pela história. No início de cada capítulo, por exemplo, aparece um objeto, um tipo de fetiche, e em seguida um personagem da história em uma posição que lembra o objeto, e este terá grande importância no enredo, além de simbolizar a condição psicológica do personagem. Há infinitas alusões aos órgãos sexuais nas formas de serpente, cigarro, ferida, lua, e muitas outras formas. Para muitos, é uma história que poderia ser lida com uma perspectiva psicanalítica. Para mim, os limites estão mais além. Em toda a história da arte, há referências aos órgãos sexuais como forma de simbolizar nossa condição espiritual, desde a pré-história existiam cultos a fertilidade que usavam figuras femininas e representações fálicas. As ciências ocultas, como a Alquimia e a Magia, são plenas de simbolismos eróticos, a integração total do ser humano com seu ser interior é conhecida como o Matrimônio do Céu e da Terra, representado como um ato sexual. Nas catedrais góticas há inúmeros símbolos que representam a vagina, assim como o falo. A pintura medieval também é cheia de referências ao sexo, na obra de Hieronymos Bosch a figura do monstro de forma meio humana e meio animal, sempre erotizado, é uma constante. Como observa Carl Jung, os elementos simbólicos dos sonhos e pesadelos, e também da arte e da mitologia, não são apenas expressões de neuroses e desejos reprimidos, mas sim partes da psiquê que precisam ser integradas e que alertam para uma necessidade de autoconhecimento. O que vemos em Black Hole talvez seja uma das maiores expressões dos quadrinhos como arte já atingida.
Em termos de enredo, a história nos remete diretamente a Kafka, com seu Metamorfose, o conto sobre o rapaz que acorda transformado em uma gigantesca barata sem nenhuma explicação lógica, nenhum porquê. É o absurdo da existência quebrando os limites coerentes da realidade. Assim como Gregor Sansa tenta se adaptar ao seu novo corpo e sair da cama para ir trabalhar, os personagens de Black Hole reagem a doença como se fosse algo natural. Nenhum deles vai ao médico nem busca uma explicação ou cura, nem sequer consultam seus pais, aliás, estes nem aparecem, são apenas coisas a serem evitadas.
Com exceção da sedutora garota com a cauda, que age como se soubesse de algo que os outros não sabem (assim como a irmã de Gregor Sansa, em Metamorfose) e continua com sua vida normal, demonstrando certa maturidade que os adolescentes não possuem, todos os outros apenas se escondem por terem sido rejeitados. Também há ecos de William Burroughs no enredo, Burns declara que ele é uma de suas principais influências. A DST de Black Hole em muito lembra a doença que aparece no romance de Burroughs Cidades da Noite Vermelha, e a narrativa da Graphic Novel é claramente baseada na técnica de recortes iniciada por ele em Naked Lunch. A presença das drogas e os constantes sonhos e delírios que também são partes importantes do enredo nos remetem diretamente a Junkie.
Os filmes de David Cronenberg parecem ser uma referência, por seu conteúdo mórbido e erotizante, onde a ferida, a deformação e a morte assumem caráter sedutor e simbólico. Se os boatos de que a história seria adaptada para o cinema se confirmassem, eu gostaria que ele fosse o diretor. Também haveria na história uma alusão clara ao advento da AIDS e seu impacto no comportamento dos jovens americanos. Como o autor declarou, isso existe, mas para mim não se trata apenas disso. Esta seria uma interpretação por demais óbvia e reducionista. Creio que pelo fato da história se passar nos anos setenta e ter elementos autobiográficos - pois Burns viveu realmente sua adolescência em Seattle e representa muitos lugares da cidade na HQ - ela se refere muito mais ao desalento que atingiu os jovens do mundo todo após o fracasso do movimento hippie e toda a onda de contestação da década anterior. Eles não conseguiram mudar o mundo e tudo que restou como conquistas foram as drogas e o sexo casual, uma espécie de herança maldita vazia de sentido para uma geração que não teria mais ideais e em breve iria mergulhar no desespero punk, e aí sim, na AIDS e em um mundo mecanizado e midiatizado, que é onde vivemos e afundamos cada vez mais desde os anos oitenta.
É a possibilidade do horror que seduz Keith e o atrai para o buraco negro, ele foi amaldiçoado e ainda não contraiu a doença, mas talvez ela já esteja nele seguindo seu curso, e nós vamos juntos em sua obsessão, sempre mais e mais fundo. Black Hole nos faz ter calafrios e lembrar de velhos amigos da escola, é o tipo de história que parece ter sido contada na beira da fogueira em acampamentos, mas não é do tipo que faz rir. É uma história sobre o que nós somos e o que nos tornamos quando descobrimos quem somos. Algumas pessoas se descobrem monstros e não podem mais viver no mundo, são os rejeitados, os párias, outras conseguem esconder quem são, mas não vivem bem entre aqueles que odeiam o que é diferente.
Também é uma história sobre morte, e o horror de descobrir que estamos em um mundo onde existem coisas anormais, desagradáveis e sujas, doenças e terrores do qual tentamos nos esconder com pequenos prazeres que muitas vezes nos consomem e nos iludem. Toda vez que estamos em um restaurante confortável e caro e vemos mendigos comendo lixo na rua, ou quando passamos a noite nos divertindo e pela manhã recebemos uma notícia ruim, ou quando encontramos um velho amigo e vemos que ele se deu mal na vida. Ou quando nós mesmos mergulhamos na desgraça. Aquele constrangimento que nos envolve e traz um gosto amargo a boca, é o sentimento de afundar neste buraco negro. É o ódio e horror que sentimos por tudo aquilo que pode nos revelar nossa condição de seres falhos, mortais e muitas vezes vazios. É por isso que quando terminei de ler Black Hole eu me lembrei de meus amigos N. e D., por que eu mergulhei um pouco no abismo. E ele em tudo parece nos remeter ao sexo, a experiência maior de prazer e fonte geradora de toda vida. O sexo, que gera a vida, garante a existência de mais um ser que será, no final, como todos, consumido pela morte. Nós nos sentimos atraídos pela "praga" junto com Keith por que o buraco negro é o lugar de onde todos viemos e ao mesmo tempo é o fim, é o lugar para onde todos vamos.
Publicado originalmente em 25 de março de 2010, no blog NSN, sob pseudônimo.
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Com exceção da sedutora garota com a cauda, que age como se soubesse de algo que os outros não sabem (assim como a irmã de Gregor Sansa, em Metamorfose) e continua com sua vida normal, demonstrando certa maturidade que os adolescentes não possuem, todos os outros apenas se escondem por terem sido rejeitados. Também há ecos de William Burroughs no enredo, Burns declara que ele é uma de suas principais influências. A DST de Black Hole em muito lembra a doença que aparece no romance de Burroughs Cidades da Noite Vermelha, e a narrativa da Graphic Novel é claramente baseada na técnica de recortes iniciada por ele em Naked Lunch. A presença das drogas e os constantes sonhos e delírios que também são partes importantes do enredo nos remetem diretamente a Junkie.
Os filmes de David Cronenberg parecem ser uma referência, por seu conteúdo mórbido e erotizante, onde a ferida, a deformação e a morte assumem caráter sedutor e simbólico. Se os boatos de que a história seria adaptada para o cinema se confirmassem, eu gostaria que ele fosse o diretor. Também haveria na história uma alusão clara ao advento da AIDS e seu impacto no comportamento dos jovens americanos. Como o autor declarou, isso existe, mas para mim não se trata apenas disso. Esta seria uma interpretação por demais óbvia e reducionista. Creio que pelo fato da história se passar nos anos setenta e ter elementos autobiográficos - pois Burns viveu realmente sua adolescência em Seattle e representa muitos lugares da cidade na HQ - ela se refere muito mais ao desalento que atingiu os jovens do mundo todo após o fracasso do movimento hippie e toda a onda de contestação da década anterior. Eles não conseguiram mudar o mundo e tudo que restou como conquistas foram as drogas e o sexo casual, uma espécie de herança maldita vazia de sentido para uma geração que não teria mais ideais e em breve iria mergulhar no desespero punk, e aí sim, na AIDS e em um mundo mecanizado e midiatizado, que é onde vivemos e afundamos cada vez mais desde os anos oitenta.
É a possibilidade do horror que seduz Keith e o atrai para o buraco negro, ele foi amaldiçoado e ainda não contraiu a doença, mas talvez ela já esteja nele seguindo seu curso, e nós vamos juntos em sua obsessão, sempre mais e mais fundo. Black Hole nos faz ter calafrios e lembrar de velhos amigos da escola, é o tipo de história que parece ter sido contada na beira da fogueira em acampamentos, mas não é do tipo que faz rir. É uma história sobre o que nós somos e o que nos tornamos quando descobrimos quem somos. Algumas pessoas se descobrem monstros e não podem mais viver no mundo, são os rejeitados, os párias, outras conseguem esconder quem são, mas não vivem bem entre aqueles que odeiam o que é diferente.
Também é uma história sobre morte, e o horror de descobrir que estamos em um mundo onde existem coisas anormais, desagradáveis e sujas, doenças e terrores do qual tentamos nos esconder com pequenos prazeres que muitas vezes nos consomem e nos iludem. Toda vez que estamos em um restaurante confortável e caro e vemos mendigos comendo lixo na rua, ou quando passamos a noite nos divertindo e pela manhã recebemos uma notícia ruim, ou quando encontramos um velho amigo e vemos que ele se deu mal na vida. Ou quando nós mesmos mergulhamos na desgraça. Aquele constrangimento que nos envolve e traz um gosto amargo a boca, é o sentimento de afundar neste buraco negro. É o ódio e horror que sentimos por tudo aquilo que pode nos revelar nossa condição de seres falhos, mortais e muitas vezes vazios. É por isso que quando terminei de ler Black Hole eu me lembrei de meus amigos N. e D., por que eu mergulhei um pouco no abismo. E ele em tudo parece nos remeter ao sexo, a experiência maior de prazer e fonte geradora de toda vida. O sexo, que gera a vida, garante a existência de mais um ser que será, no final, como todos, consumido pela morte. Nós nos sentimos atraídos pela "praga" junto com Keith por que o buraco negro é o lugar de onde todos viemos e ao mesmo tempo é o fim, é o lugar para onde todos vamos.
Publicado originalmente em 25 de março de 2010, no blog NSN, sob pseudônimo.
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