4 de out. de 2011

E o Oscar vai para ... Daytripper!


*contém spoilers

Acidentes de carro, câncer no cérebro, grandes revelações, amor a primeira vista, jovens frustrados em empregos ruins, problemas familiares, negros fazendo merda, cachorrinhos, crianças brincando, primeiro beijo, separações dolorosas, ataques cardíacos fulminantes, nomes bregas, superstições populares, regionalismo, câncer no cérebro, acidentes de carro, velhinhos felizes, crianças brincando, problemas familiares, mulheres dando a luz, aviões caindo, amigos se abraçando, funerais, filosofia de buteco, lágrimas e mais lágrimas... UFA!

Onde você já viu isso?

Em qualquer telenovela das oito e também em uma das graphic novels mais premiadas e elogiadas dos últimos anos: Daytripper, o "romance gráfico" dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, lançado este mês pela Editora Panini.

Publicada originalmente nos EUA pelo selo Vertigo, Daytripper tem 256 páginas e é dividida em dez capítulos. Narra a vida hipotética de Brás de Oliva Domingos, o filho de um famoso escritor. Ele é um jovem frustrado que também almeja a carreira literária, mas trabalha escrevendo obituários para um jornal.

Vivendo a sombra de seu pai, Brás é um típico brasileiro, ele não desiste nunca, quer realizar seu sonho de se tornar um grande escritor e viver os "momentos especiais" da vida. Apesar de morrer no final de cada capítulo, ele sempre retorna no seguinte, para dar continuidade a sua luta em uma idade diferente e viver grandes melodramas. Cada capítulo tem como título a idade de Brás naquele momento, assim passeamos pela sua saga de maneira não linear, começando com o dia em que seu pai será homenageado no Theatro Municipal de São Paulo!

Logo neste primeiro capítulo, o leitor se depara com saídas melodramáticas fáceis, típicas de filmes holywoodanos e novelas mexicanas. Vemos Brás como um jovem frustrado que sonha ser escritor, mas trabalha redigindo obituários. É um emprego medíocre para uma pessoa que tem como referência o pai, um escritor considerado gênio. O dilema de Brás é o mais tacanho possível: vou ou não vou a festa do papai? Será que sou medíocre o suficiente pra ter inveja dele? Será que é certo conversar com cachorrinhos? Por que ninguém lembra do meu aniversário, eles não entraram no Facebook hoje? Coitadinho de mim!

Todo mundo o considera um fracassado e não lhe presta atenção, sua figura é insignificante comparada com a do velho, ele entra em crise e vai até um bar no centro de São Paulo, sendo surpreendido por um assaltante, que estranhamente também se preocupa demais com sua família e é tão tagarela quanto as piores caricaturas de bandidos do cinema mainstream. Não preciso dizer o que acontece.

No segundo episódio, Brás está em viagem com seu melhor amigo, Jorge, um fotógrafo negro, boa praça e feliz, de cabelos reaggae. Uma caricatura de negro que parece ter sido feita por quem nunca teve um amigo negro. Eles estão na Bahia, durante as festas de Iemanjá. Na crença do candomblé brasileiro, esta entidade sobrenatural seria a rainha das águas, algo mais ou menos como o Aquaman na forma feminina. No dia 2 de fevereiro de cada ano é feita uma celebração em sua homenagem em que os devotos atiram oferendas ao mar. Brás entra na água e chega a um barco, onde encontra uma morena gostosa de cabelos loiros (?!!), subitamente eles conversam filosofando sobre solidão, mesmo sem nunca terem se visto antes, em um diálogo mais falso que o cabelo da morena. Não preciso dizer que se apaixonam e tudo, porém Brás cai na água enquanto leva suas macumbinhas para Iemanjá, é o fim denovo. Não antes de se deixar claro que a história se passa no Brasil, uma terra exótica, para os gringos verem.

Então Daytripper segue como uma constrangedora sucessão de clichês de ficção barata e diálogos pobres. No próximo capítulo do folhetim, Brás já aparece em relacionamento com a morena, alguns anos depois, e eles estão se separando de forma nada amigável. O jovem vive todo o draminha de ficar sem a mulher que lhe chutou a bunda. Vemos então aquelas cenas repetidas inúmeras vezes em filmes românticos com Tom Cruise e companhia: o apartamento vazio, o cara desconsolado dizendo que nada mais será o mesmo, as discussões com direito a palavrão soft. Lágrimas e mais lágrimas que só secam quando o marmanjo vai a uma padaria, vê uma garota bonita e se apaixona por ela perdidamente! Isso mesmo! Sem conhecer nada sobre a mulher, sem saber se ela é casada, se ela gosta dele, se ela tem mau hálito ou se é uma prostituita, ladra ou qualquer coisa, Brás decide que ela é A pessoa com quem ele deve passar a vida inteira junto! Já viu algo mais clichê? Veja só a qualidade dramática deste roteiro, sem dúvida que daria inveja a Benedito Ruy Barbosa!

Mas é lógico que Brás morre no final, para depois já aparecer casado com a desconhecida da padaria e pasmem! logo no dia do nascimento do seu primeiro filho. A cena seguinte é a mais clichê possível: pai preocupado no hospital fuma um cigarrinho, mas ai acontece um imprevisto, celulares falham e o pai dele, o velho escritor Benedito Ruy Barbosa, oops, Benedito de Oliva Domingos! (será uma referência?) bateu as botas no mesmo dia! Dai vem todas aquelas conversas tipo casos de família e revelações incríveis. Terminando com Brás também batendo as botas pelo coração fraco. É o tipo de história que você enseja ver em um seriado da Globo, mas nunca em uma HQ.

Depois retornamos a infância de Brás e este pra mim é o melhor capítulo da história, tanto em arte quanto em texto. Vemos a família dele toda reunida em uma fazenda pra passar um fim de semana. Com um texto simples e sem grande pretensão melodramática, tirando na parte em que narra uma lorota sobre o nascimento de Brás, é mostrado como as crianças se divertiam com brincadeiras típicas do Brasil e como isso representava um ponto de união entre os diferentes indivíduos que compunham a família. Brás é atraido pela prima e dá o seu primeiro beijo. É lógico que morre no final, mas temos ai o único bom episódio, exatamante por que é o mais despretensioso.

Se Daytripper tivesse seguido essa linha de roteiro, sem exageros e apelações, diálogos pouco naturais e filosofia de buteco, teria sido uma boa HQ.


O restante da história se resume a basicamente duas coisas: a ascensão de Brás como escritor e sua busca pelo amigo Jorge, que enlouquece após escapar de um acidente de avião. O acidente retratado é o caso real de um voo da TAM que ocorreu em 2007, onde morreram quase cem pessoas. Na trama, Jorge está em viagem ao Rio de Janeiro e escapa da morte por pouco, a partir daí, ele decide por em prática a Filosofia de Vida Daytripper, largando tudo e virando mendigo de praia na Bahia.

Durante toda a HQ é repetido o adágio Paulo Coelhiano de que nós podemos morrer a qualquer hora, por isso é necessário viver os "momentos" especiais da vida como se fossem os únicos. Jorge vai viver como se não houvesse amanhã em uma cabana na praia. Brás vai atrás do amigo, mesmo já sendo um escritor famoso por seu primeiro romance e tendo responsabilidade com mulher e filho. O que acontece no encontro dos dois é o mais famoso clichê dos filmes americanos: se o negão da história não é o primeiro a morrer, ele é o primeiro a matar.

No final os irmãos Bá e Moon experimentam com uma narrativa menos ortodoxa, utilizando o maior clichê da experimentação narrativa, os sonhos. Nada que já não tenha sido visto milhares de vezes. A HQ encerra com Brás e a moça desconhecida da padaria casados e velhinhos. Ele tem cancêr de cérebro (uma forma de morrer típica das novelas mexicanas), e como todo velhinho que segue a Filosofia de Vida Daytripper , continua a experimentar um momento de cada vez.


Nada salva Daytripper. Permeado de filosofia barata estilo Paulo Coelho, clichês de telenovela e diálogos forçados, é uma graphic novel decepcionante. Parece ter sido feita para uma adaptação ao cinema de Hollywood. É o tipo de história que certamente vai agradar as massas sedentas de dramalhão estilo Sean Penn. Daytripper foi feito pra ganhar prêmio, e por isso mesmo os coleciona: já ganhou Eisner, Eagle e vários outros, mas como realização artística deixa muito a desejar.

Não há nehnuma contribuição a linguagem narrativa, a disposição dos quadros é convencional ao extremo. A arte em muitos momentos é pobre, não passando de bonitinha e competente nos melhores capítulos e chegando a terrível em trechos como a primeira parte. Os personagens quase não demonstram expressões, parecem desenhados para facilitar a leitura e acessibilidade de um público não acostumado com quadrinhos. A pretensão literária do texto beira o ridículo e chega a ser constrangedora em muitos momentos, com suas lições bobas de auto-ajuda. A referência clara dos autores são os melodramas chatos e exagerados de Will Eisner, exatamente o principal defeito daquele que foi um grande artista das HQs. As metáforas ensaiadas, como a do título, que se refere aos turistas que passam apenas um dia em seu destino, querendo dizer que na vida tudo pode mudar ou acabar em apenas um dia, são fracas e bobas.

Apesar disso é uma obra bem executada, assim como as melhores novelas da Globo e os melhores blockbusters românticos-dramáticos e os melhores best-sellers da literatura popular.

A proposta inicial dos autores, de contar momentos da vida dos homens comuns, não é de todo condenável. Há mesmo grandes artistas de quadrinhos que hoje narram elementos do cotidiano em seus trabalhos, tirando daí grandes dramas. Porém é necessário frisar que contar experiências comuns do cotidiano não nos leva necessariamente a mediocridade e ao raciocínio raso, á filosofia de auto ajuda e ao surrealismo de novela das oito. O cotidiano pode ser sim grandioso e precisa ser tratado com uma visão mais profunda, não folhetinesca. Vejamos Asterios Polyp, por exemplo.

Espero sinceramente que a crítica de quadrinhos seja menos condescendente com trabalhos desse tipo e tenham uma visão que não abone os artistas pelo fato de serem brasileiros. É realmente importante para o Brasil que nossos artistas de quadrinhos ganhem prêmios e mostrem nossa cultura para o mundo, mas produzir ficção barata não deveria ser nossa especialidade. Dizem que Daytripper abriu as portas para roteiros de brasileiros serem aceitos no mercado americano, mas se as portas abertas são para historinhas clichês permeadas com personagens batidos de nomes ridículos, cachorrinhos e criancinhas, então prefiro que as portas continuem fechadas.



A Panini lançou Daytripper em uma versão encadernada de capa dura que fica em pé na estante, custa R$ 62,00 e pode ser colocado ao lado dos melhores livros de outro escritor brasileiro muito premiado lá fora, o nome eu já disse.


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1 Comentário:

eduardo disse...

Realmente essa é a unica critica séria e isenta que eu vi dessa obra e desses caras, que estranhamente são unanimidade nacional. Voce procura no Google e só vê oba-oba e pagação de pau para eles. No Brasil ninguem critica ninguem, todo mundo tem aquela cumplicidade velada, para reforçar aquela superioridade fingida.

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