10 de set. de 2010

Asterios Polyp - O Modernismo nas Histórias em Quadrinhos



Quando ouço falar em uma obra premiada minhas sobrancelhas se levantam em tom de desconfiança. Para mim as premiações dependem muito de consensos e generalizações. Não é que não devam existir prêmios, o problema não é esse, é lógico que devemos dar reconhecimento aos artistas, mas é que nunca se pode definir com razão, entre cinco obras primas, por exemplo, qual é a melhor, aquela que merece os louros. Isso sem falar que muitas vezes todos os concorrentes são ruins e entres estes deve-se escolher o menos pior, ou muitas vezes conta mais a influência do autor do que a obra em sí.

Entre os concorrentes ao prêmio Eisner de melhor álbum gráfico inédito deste ano estavam duas obras que eu já conhecia: Gênesis, de Robert Crumb e O Fotógrafo, de Emmanuel Guibert, Didier Lefèvre e Frédéric Lemercier. Além destes havia Asterios Polyp, de David Mazzucchelli. As outras eu não conhecia, mas a Bíblia do gênio do underground, além do Fotógrafo, já tinham sido lançadas por aqui e eu achava que este último seria o grande vencedor do ano. Tinha ouvido falar, mas não conhecia nada sobre Asterios Polyp, e para minha surpresa, esta Graphic Novel sensacional acabou levando todos os maiores prêmios.

Ao saber disso, superei meu desinteresse comum pelas premiações e hypes e fiquei curioso em descobrir o que poderia levar uma Graphic Novel a ser considerada melhor do que O Fotógrafo, sinceramente não imaginava que tal nível de excelência poderia ser atingido. Eu conhecia de David Mazzuchelli o mesmo que todo mundo conhece: o Batman - Ano Um, e o Demolidor - A Queda de Murdock que ele fez junto com Frank Miller, além de Cidade de Vidro, a adaptação de uma história de Paul Auster em parceria com Paul Karasik. Sentia sua falta nos quadrinhos mas tinha uma vaga ideia de um dia ter ouvido que ele agora era professor e não desenhava mais. O fato é que Mazzucchelli passou quinze anos sem produzir uma HQ de destaque e é uma surpresa esse seu retorno ao ramo. Decidi buscar Asterios Polyp e descobri que não era só mais um gibi que poderia ser enfeitado na capa com um selo “premiado com o Eisner”, mas que sua escolha era inevitável. Cheguei a esta conclusão nas primeiras trinta de mais de trezentas páginas. Para o inferno com o prêmio Eisner, esta Graphic Novel não é um gibi “premiado com o Eisner”, é uma Obra de Arte!


Asterios Polyp é um grande arquiteto, ou mais precisamente, um grande teórico da arquitetura, pois apesar de ter uma carreira renomada, nenhum de seus projetos jamais foi construído. No entanto, ele atingiu uma alta consideração no meio pela excelência de suas ideias. Ele sempre foi o melhor aluno, desde Harvard até Oxford, e mais tarde se destacou como um emérito Professor na universidade de Ithaca, onde passou grande parte de sua vida, publicando livros e fazendo projetos arquitetônicos. Filho de imigrantes europeus que foram para a América no início do século XX, foi concebido junto com um irmão gêmeo, que morreu ao nascer. Este personagem, que teria se chamado Ignazio, apesar de não ter chegado à existência como a conhecemos, é quem nos conta sua história!

No dia do seu aniversário de 50 anos, vemos um Asterios Polyp amargurado, solitário, assistindo um vídeo caseiro em seu moderno apartamento decorado com belos móveis ao estilo funcional da escola Bauhaus, quando um raio subitamente põe fogo em sua moradia e ele é obrigado a fugir sem destino. Em paralelo, seu irmão gêmeo, que nunca existiu, nos coloca a par de sua visão de mundo: um amálgama de ideias modernas e considerações pessoais egocêntricas que Asterios formulou a partir da vida no meio acadêmico como um professor e teórico. Nós vemos que ele passou a existência mergulhado em um intelectualismo estéril e, por se sair bem neste universo, pouco buscou saber além daquilo que suas concepções lhe mostraram dele mesmo. Suas relações pessoais se construíram na universidade, todo seu universo gira em torno disso. Sua vida pregressa vai sendo narrada para nos esclarecer quem é o personagem que foge sem rumo, sozinho e vazio, de uma estação de metrô para o destino desconhecido.

Ficamos sabendo que na universidade Asterios era um Professor muito popular, frequentava festas e fazia sucesso com as mulheres. É lá que ele conhece Hana Sonnenschein, uma jovem professora de escultura, filha de um alemão com uma japonesa. Ela é uma artista de talento e obcecada pelo seu trabalho, porém nunca foi reconhecida e sempre se sentiu desprezada pelo meio. Hana é em tudo o oposto de Asterios: ele fuma demasiado, ela odeia cigarro, ele é popular e tem muitas mulheres, ela não tem vida social, ele ama carne de porco, ela é vegetariana, ele é em tudo racional, ela é intuitiva, ele pensa que religião é uma bobagem, ela é apaixonada por São Francisco de Assis. Mesmo assim eles seguem em um relacionamento e se tornam marido e mulher.

Voltando ao presente, após ter seu lar destruído pelo raio, Asterios foge sem rumo em um ônibus, chegando a uma cidadezinha chamada Apogee, onde, apenas com a roupa do corpo e uns poucos souvenirs no bolso, arruma um emprego como mecânico de carros, apesar de não saber nada sobre o assunto. Lá ele vai ser acolhido por Stiff Major, um mecânico gente boa que em comum com Asterios tem apenas o fato de ser casado com uma mulher cujo jeito de ser é completamente diferente do seu. Ela se chama Ursula e eles tem o pequeno “running dog” Jackson, em uma família simples e feliz. Eles convivem com pessoas com quem Asterios nunca teria contato, como o revolucionário Gerry, que esta formando uma banda de rock para mudar o mundo, e um cara que acha que um Asteróide pode cair na terra a qualquer momento e destruir a humanidade. Para Asterios estas coisas parecem ser novas experiências.



Passado e presente se alternam. Em seu relacionamento com Hana, Asterios deseja que ela apenas sirva ao seu grande ego, que ela orbite em torno dele. Eles se casam, mas ela vive a seu dispor, sem nunca poder se realizar. Ele busca certezas sobre a vida baseadas no conceito de dualidade, é aficionado pela ideia nietzschiniana do conflito entre o Apolíneo e o Dionisíaco, e sua preferência é clara pelo Apolíneo, o que reflete em sua teoria artística (o que não for funcional é meramente decorativo) e em sua vida pessoal, onde reprime a outra parte, emocional e intuitiva. Asterios dá demonstrações públicas de um ego inflamado e autocêntrico, o que aos poucos corrói seus relacionamentos. Em uma conversa ele revela a Hana que possui câmeras por todo seu apartamento, registrando tudo que acontece lá dentro. Ele explica que desde criança é obcecado com a ideia de estar vivendo a vida do irmão morto. Sua fixação em um mundo racional dualista passa por provações, como na visita que ele e Hana fazem à sua mãe, onde ela conta como suportou, com fé e abnegação, a doença e morte de seu pai, o velho Eugenio Polyp. Porém mesmo assim Asterios se mantém firme em sua dureza.

No presente, sua amizade com Ursula Major se revela um contraponto interessante. Eles são dois mundos completamente opostos colidindo. Ela acredita em astrologia, bolas de cristal, tradições indígenas e tudo que Asterios naturalmente repudia. Mas ele não deixa de aprender um pouco com ela. Este contraponto nos faz ver que a busca dele por certezas baseadas em dicotomias é apenas uma simplificação, que o mundo não pode ser resumido a dualidades. Além disso o convívio na casa dos Major o põe em contato com uma vida mais simples, em que sua arrogância de Professor não acha lugar. Aos poucos ele vai agregando experiências que nunca teve antes, como a de construir uma casa na árvore para o pequeno Jackson, a primeira casa que ele, um arquiteto renomado, jamais construiu.

A complexa teia do destino de Asterios progride até o momento em que entra em cena Willy Ilium, um excêntrico e renomado dramaturgo que se interessa pelo trabalho de Hana, querendo que ela faça a cenografia de seu novo espetáculo. Com este fato o lado egocêntrico de Asterios vai se revelar para sua esposa e a história não será mais a mesma, ele desce ao inferno e isto o levará mais próximo de quem ele realmente é.



Asterios Polyp foi pensado cuidadosamente durante vários anos e reúne reflexões filosóficas profundas, por isso há muitas metáforas, simbolismos, citações e referências, elas estão em todas as páginas, em cada quadrinho. O grande tema do livro é o conceito de dualidades, a visão de mundo do nosso protagonista é de uma realidade dividida em dois pólos opostos. Ele se recusa a enxergar além disso. Tudo na composição da obra remete a essa ideia, a começar pelos nomes dos personagens.

Quando é contada a origem dos pais de Asterios, afirma-se que o nome de família foi cortado ao meio, e como é apontado na ótima resenha do New York Times, este nome poderia ser Polyphemos, o nome do gigante caolho da Odisséia, o filho de Poseidon que foi um dos Ciclópes. Essa criatura é a perfeita descrição do nosso personagem principal, que tem uma visão incompleta da realidade. O nome Asterios, de origem grega, poderia ser derivado de Asterismo, palavra que designa pequenos agrupamentos de estrelas que não chegam a ser constelações, ou simplesmente, asteróides. Em contraponto, seu irmão tem um nome de origem romana, Ignazio, significando fogo, e uma referência a Ignazio Danti, cientista e matemático da Renascença que se dedicou à astronomia, mas também à religião. Sua esposa se chama Hana, "flor" em japonês, Sonnenschein, "luz do sol" em alemão. A cidade para onde ele foge se chama Apogee (apogeu), que é o ponto mais afastado a qual um astro pode chegar em sua órbita. A matriarca dos Major se chama Ursula, um trocadilho com Ursa Maior, a grande constelação visível no hemisfério norte que serve de guia aos viajantes. Estas são pequenas chaves que enriquecem e ajudam na compreensão da obra.



São inúmeras as citações e alegorias filosóficas para ressaltar a ideia de dualidades, por exemplo, a teoria de Aristófanes, de que o ser humano originalmente era um andrógino com quatro braços e pernas, dois rostos e forma esférica, mas que por sua vontade de potência exagerada foi desmembrado por Zeus em duas partes, o homem e a mulher, gerando em nós o sentimento de incompletude, ilustra a ideia de Asterios da natureza baseada em dois princípios que se opõe, mas se complementam, e isto se reflete em seu relacionamento com Hana, onde ele inconscientemente busca esta experiência, mas distorce a ideia a ponto de achar que sua opção pelo lado apolíneo da natureza deve se impor e anular a outra parte.

Vale a pena para quem lê a HQ pesquisar um pouco sobre o conceito de dualidade, será fácil perceber que esta ideia está presente em praticamente todas as tradições religiosas e filosóficas, manifestando-se desde o taoismo, com o ying-yang, os princípios masculino e feminino da natureza, até no hinduísmo, simbolizados pelos deuses Shiva e Shakti, e entre os antigos persas, com Meshia e Neshiane, deuses que formavam um só indivíduo mas que se separaram. Nas ciências ocultas existe a representação deste princípio na figura do Baphomet, com sua misteriosa máxima "solve e coagula" e nas colunas dos Templo de Salomão, Jacim e Boaz. Platão também é uma grande referência, com a proposta da dualidade dos mundos sensível/inteligível e suas teorias dos cinco sólidos, que inclusive são queridas à Asterios. A dualidade também aparece em diversos momentos representada pela figura de Jano, o deus romano de duas cabeças e na composição de quadros e em objetos espalhados por toda a história, essas referências ficam semi-ocultas e é desejável que o leitor as descubra pelo seu próprio prazer e risco.


Há outras referências, obviamente a Odisseia de Homero é talvez a mais óbvia, Mazzucchelli afirmou em entrevista que esta foi uma das suas maiores inspirações. A Odisseia conta o retorno de Odisseu para Itaca, sua terra natal, após a guerra de Tróia (contada na Iliada). Já falei sobre a origem do nome Polyp, que vem de Polyphemus, este ciclópe aparece na saga de Odisseu, prendendo ele e seus homens em uma caverna, de onde o herói sofre muito para escapar. Além disso, a Universidade onde Asterios leciona apropriadamente se chama Ithaca.



A saga de Orfeu também é citada em determinado ponto e é uma grande metáfora da história. Na mitologia grega Orfeu era filho de Apolo e da musa Calíope, foi o maior poeta e músico do mundo, tanto que até os pássaros paravam para ouvi-lo quando ele tocava sua lira. Casou-se com Eurídice, mas ela morreu picada por uma abelha, então Orfeu desceu ao mundo subterrâneo dos mortos para tentar convencer o maligno Hades á trazê-la de volta a vida, o que ele conseguiu com sua música. Porém ele não deveria olhar para Eurídice até que os dois estivessem de volta ao mundo do vivos. Mas Orfeu é impaciente e olha para trás para ter certeza que ela o segue, e assim os dois se perdem para sempre.

Outra característica marcante nesta obra de Mazzucchelli é o uso magistral dos elementos da linguagem das Hqs, os balões, as letras, a formatação das páginas, a caracterização dos personagens e o tempo narrativo. Não quero ser chato falando muito disso, pois são coisas que devem passar despercebidas na hora da leitura quando são bem feitas. Basta dizer que as variações de letras, cores e composição de página são simplesmente exatas. Cada personagem tem um estilo de letra e balão próprio, mas isto não é apenas uma convenção, foi feito para caracterizá-los. Além disso o desenho de Mazzucchelli atingiu aquele ponto em que uma linha expressa mil coisas, os personagens ganham vida, mesmo sendo um traço caricato. O uso extensivo de silhuetas, formas variadas para os quadrinhos, como circulos e páginas abertas, lembra muito Will Eisner em seus melhores trabalhos. Os artifícios de usar metáforas visuais dentro dos balões e as inúmeras recorrências a espaços negativos remetem aos estudos teóricos de Scott McCloud.

O livro é dividido em 22 capítulos, cada um tem uma imagem de abertura, representando um tema que será apropriadamente explorado na história. Outros objetos também assumem caráter simbólico na narrativa. Por exemplo, quando Asterios foge de sua casa incendiada pelo raio, logo no início do livro, ele leva consigo um isqueiro que lhe foi presenteado pelo seu pai, um relógio de sua época de estudante e um canivete suíço que Hana certa vez encontrou em uma praia e lhe deu. A medida que ele vai convivendo com os Major, e aprendendo novas formas de interação com a realidade, vai abandonando esses objetos, se distanciando do seu passado. O próprio incêndio na casa de Asterios é simbólico, pois segundo Aristófanes, foi com um raio que Zeus dividiu o andrógino ao meio.


Mas o ponto máximo da boa execução de Asterios Polyp é quando o autor conseguiu fazer a união perfeita entre conteúdo e forma: em um determinado capítulo os episódios do passado de Asterios são narrados em uma perspectiva única nas histórias em quadrinhos, algo que eu nunca vi em nenhuma HQ. Partindo da ideia moderna de que cada ser humano tem uma visão particular da realidade, construída pela sua própria subjetividade, e que nossa percepção de mundo por si mesma define o mundo ao nosso redor, Mazzucchelli idealizou um estilo de representação gráfica própria para cada personagem, todos baseados em movimentos artísticos do modernismo, como o expressionismo, o construtivismo, o cubismo, o impressionismo, o DADA, o futurismo e as artes gráficas. Dezesseis estilos diferentes que na abertura do capítulo são aplicados em representações de uma maçã!

Dessa forma ele representa toda uma gama rica e variada de seres que orbitam o mundo de Asterios, levantando o questionamento de que se nossa percepção molda a realidade, e se cada um de nós é único, mas convive em um meio social, talvez possamos ser influenciados por outras percepções, e nossa realidade possa não ser tão segura quanto pensamos, ou seja, não somos o centro do universo, mas estamos em uma relação caótica, sem órbita própria, com outros “Asteróides”. É dessa forma que vemos Asterios ser representado com linhas de construção de sólidos geométricos Cyano e Hana com linhas de um desenho rachurado magenta, e a medida que seus universos pessoais vão se aproximando ou se separando ao longo de toda HQ, os estilos de desenho se mesclam ou se contrapõem, e isso flui de forma sutil durante a narrativa, sem nenhum choque para o leitor. Algo simplesmente genial.

Com relação ao tempo narrativo, não é nenhuma novidade um autor prescindir da forma linear e acrescentar sonhos e memórias, mas em Asterios Polyp esta forma também segue algumas propostas do conteúdo filosófico da obra. A história de Asterios é narrada pelo seu irmão Ignazio, e a história deste é sonhada por ele. Mas não é apenas um sonho, é o outro lado da realidade que ele tenta vivenciar, o das possibilidades: O que aconteceria se em vez de Asterios, Ignazio sobrevivesse? Ele se tornaria arquiteto? Realizaria suas obras? Seria um apolíneo ou um dionisíaco? Ignazio aparece nestes delírios também como arquiteto, mas em vez de apenas um teórico ele tem seus projetos construídos, e eles representam o exato oposto das ideias de Asterios, em vez de linhas funcionais e simetria, temos curvas e formas orgânicas!


Como podemos perceber um personagem tão incomum como Asterios Polyp? Ele é um homem que só tem a metade do nome, nasceu no dia 22 de junho de 1950, exatamente o primeiro dia da segunda metade do século XX, ou seja, perdeu a primeira metade. Julga as pessoas pelas suas próprias ideias, vê tudo em preto e branco. Ele até parece um personagem clássico de gibis comerciais de super herói, aqueles para quem o mundo se resume a dualidades simplistas, mas não é bem assim. A sua leitura me lembrou muito os personagens do escritor alemão Hermann Hesse, um dos meus autores preferidos, que tem inclusive o seu romance Narciso e Goldmund citado na obra como exemplo da representação de dualidades na história das artes. Hesse foi autor de Demian, um romance de formação em que o personagem Emil Sinclair sofre os efeitos negativos de uma educação moral conservadora e na juventude é levado a considerar que existem dois mundos, um mundo santo e outro demoníaco, mas estes dois mundos se complementam e se interpõe um ao outro, formando uma realidade complexa. Todos os romances de Hesse falam de conflitos entre dualidades morais. Asterios Polyp é uma forma mais simplificada dos personagens deste autor, ele também tenta sistematizar a realidade, porém é menos moral e mais ontológico. Seu trauma é a morte do irmão gêmeo. É como se ele tentasse compensar a perda deste seu duplo com um excesso de racionalismo, paixão pelo abstrato em contraponto ao real, ódio pela irracionalidade da natureza. É uma tentativa forçada de submeter o mundo, o que o torna um ser irremediavelmente incompleto e incapaz de viver uma existência plena, pois não enxerga nada em sua complexidade real.

Asterios busca preservar sua memórias filmando a própria vida, como os reis antigos que ordenavam a mumificação de seus corpos e a preservação de todos os seus pertences. Seria para atingir a imortalidade? Para um arquiteto que não teve nenhum de seus projetos construídos essa talvez possa ser a maneira de vencer o tempo. Entre os muitos questionamentos sugeridos há alguns realmente interessantes. O que resta da vida de um homem além das memórias de suas realizações? Se o mundo é definido pela visão que temos dele, então quando deixamos a existência, este mundo também deixa de existir? As coisas que vemos são a única realidade ou existem mais coisas em um mundo ideal de possibilidades? Como na teoria platônica, as ideias existem em formas universais independentes de tempo e espaço?

Asterios Polyp questiona os conceitos duais que regem (e muitas vezes complicam) nossas vidas: real e imaginário, vida e morte, civilização e natureza, bem e mal, corpo e alma, razão e emoção. A ideia proposta é que talvez não estejamos suficientemente prontos para encarar a complexidade total da existência, que nossas visões estejam embaçadas pela fixação em uma oposição simples entre este e aquele, um ou outro, o que na maioria das vezes não nos proporciona nada além de uma visão superficial das coisas e uma imersão em nossos próprios egos. Asterios é a metáfora de um astro solto no espaço que se acha o centro do universo, o que muitas vezes se reflete em cada um de nós em nossas vidas particulares. Mesmo não tendo sua visão racionalista, seguimos muitas vezes julgando tudo apenas a partir de nossos egos, e por isso, não conseguimos enxergar muita coisa. Todos somos um pouco Asterios Polyp.

Apesar de sua complexidade e de um certo pedantismo em determinados momentos, Asterios Polyp consegue proporcionar ao leitor a imersão no grande dilema de seu personagem, exatamente por ser uma obra que trouxe a harmonia perfeita de uma constrangedora dualidade poucas vezes superada: o rigor formal e a fruição emocional em uma obra de arte. Este foi sempre o objetivo maior dos pioneiros da arte moderna, e foi atingido aqui plenamente. É certo que lendo o livro há momentos em que parece que estamos em uma aula de filosofia, pois os personagens foram concebidos para expressar conceitos e não para representar pessoas “reais”, mas há também humor e envolvimento emocional com eles e no fim a leitura é algo envolvente. Levado por esse ponto de vista eu afirmo que sem dúvida alguma Asterios Polyp de David Mazzucchelli é uma das maiores realizações das histórias em quadrinhos em todas as épocas, feita para quem aprecia os quadrinhos como arte na medida em que a experiência da leitura pode nos proporcionar um pouco de conhecimento sobre nós mesmos.


*Asterios Polyp será lançado em breve no Brasil pela Editora Companhia das Letras.

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